O ótimo livro que inspirou o ótimo filme. Com esse nome é óbvio que não é pra todo mundo, mas para mim tanto livro quanto filme são 10 de 10.
O livro acompanha Lomeli, decano do Colégio de Cardeais, desde a morte do papa até o fim do conclave, processo de eleição do líder católico. A eleição se divide basicamente entre conservadores e liberais, os cenários principais são a Casa Santa Marta, onde os cardeais ficam hospedados, e a Capela Sistina, onde são realizadas as votações.
A eleição dessa história é formada por 108 cardeais, sendo um recebido de última hora. O arcebispo de Bagdá, Benítez (Carlos Diehz no filme), chega no último momento, dizendo que o falecido papa o havia tornado cardeal in pectore (latim para “no peito/coração”), ou seja, em segredo.
Conclave é literalmente “com chave”. A história é às vezes propositalmente um pouco claustrofóbica, mas a gente também fica sabendo que eles não ficam TÃO trancafiados assim. O contato com a equipe responsável pelo processo é constante e essa galera tem acesso irrestrito com o mundo exterior.
Como se pode imaginar, a imensa maioria dos personagens do livro são idosos. Não dá pra sequer imaginar muita ação, mas o ritmo tanto do livro quanto do filme são ótimos e os diálogos são excelentes. Toda a politicagem envolvida no processo é muito bem construída com debates extremamente interessantes.
Essa era a noite em que o verdadeiro trabalho do Conclave começava a ser feito. Embora, em teoria, a constituição papal proibisse os cardeais eleitores de se envolverem em “qualquer forma de pacto, acordo, promessa ou compromisso” sob pena de excomunhão, aquilo se transformara numa eleição, que não passa de um problema de aritmética: quem pode chegar aos setenta e nove votos?
O livro também contrasta várias vezes o processo extremamente político com as missões reais da igreja, de fazer o bem e acolher os necessitados (às vezes a gente esquece né?) O mundo lá fora está um caldeirão prestes a explodir e trazer paz e conforto para as pessoas não parece ser a preocupação número 1 de ninguém.
Nessa mesma pegada, por muitas vezes o autor traz como as mulheres são invisíveis dentro da religião e como Deus é esquecido no meio disso tudo. Engraçado como essa é uma história extremamente masculina, mas vira e mexe o feminino é um tema abordado de um jeito ou de outro.
Como agnóstico com passado evangélico, confesso que o livro me emocionou em vários momentos. Tem uma homilia do personagem principal sobre dúvida que é um dos pontos altos da história pra mim.
Meus irmãos e minhas irmãs, no transcurso de uma longa vida a serviço de nossa Igreja Mãe, deixem-me dizer-lhes que o pecado que vim a temer mais do que todos foi a certeza. A certeza é o grande inimigo da união. A certeza é o inimigo mortal da tolerância. Mesmo Cristo não tinha certeza quando chegou seu fim. ‘Eli, Eli, lama sabachtani?’ Isso foi o que ele gritou em sua agonia, na nona hora da Cruz. ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’ Nossa fé é uma coisa viva precisamente porque ela caminha de mãos dadas com a dúvida. Se existisse apenas a certeza, e não houvesse dúvida alguma, não haveria o mistério, e, em consequência, não haveria a necessidade da fé.
Depois de Mickey7, esse foi mais um ótimo livro que inspirou um filme.
Uma curiosidade: o livro foi escrito em 2016, ou seja, 3 anos depois que o papa Francisco havia sido eleito. A narrativa não dá nome ao papa falecido, mas diz que ele era um liberal. Vários papas reais são citados, inclusive Bento XVI, então quase dá pra imaginar que o livro é uma interpretação do próximo conclave.
Spoilers
Li o livro sabendo de um spoiler gigante: o final tinha um plot twist gigantesco, eu só não sabia qual. Minha esposa leu primeiro, pedi para que ela não me contasse, mas com 60% do livro lido, perguntei se eu tinha descoberto o final e eu tinha. Eu te conto aqui um pouquinho mais adiante.
No começo da votação, existem quatro candidatos sérios:
- Tedesco (Sergio Castellitto): italiano, conservador;
- Adeyemi (Lucian Msamati): nigeriano, também conservador;
- Tremblay (John Lithgow): franco-canadense, meio lá, meio cá e
- Bellini (Stanley Tucci): italiano, liberal e a escolha pessoal de Lomeli para ser o próximo papa.
Logo no começo um arcebispo cachaceiro conta a Lomeli que Tremblay havia sido demitido pelo papa em sua última reunião. Tremblay nega e como o pudim de cachaça não é confiável, Lomeli não pode fazer muita coisa.
— Muito bem. — Ele respirou fundo. — Lembra-se de que, no dia em que o Santo Padre morreu, a última pessoa a ter uma audiência oficial com ele, às quatro da tarde, foi o cardeal Tremblay?
— Sim, estou lembrado.
— Bem, nessa audiência, o Santo Padre destituiu o cardeal Tremblay de todos os seus cargos na Igreja.
— O quê?
— Ele o demitiu.
— Por quê?
— Por um grave desvio de conduta.
Lomeli a princípio não conseguiu falar. Depois, disse:
— De fato, arcebispo, poderia ter encontrado um momento melhor para vir me comunicar uma coisa dessa natureza.
Uma freira aparece do nada e o cardeal Adeyemi perde as estribeiras. Lomeli investiga e descobre que Adeyemi teve uma filha com a tal freira, o que joga sua candidatura a papa no lixo. Ninguém quer arriscar um papa cercado por mais escândalos.
Para entender como a freira apareceu, Lomeli conta com a ajuda de irmã Agnes (Isabella Rossellini), talvez a única personagem feminina na história. Quem havia mexido os pauzinhos para trazer a tal freira foi Tremblay. Lomeli o confronta e Tremblay diz que fez isso a mando do próprio papa.
A fim de investigar, Lomeli então invade o quarto do papa e descobre uma série de documentos escondidos na cabeceira de sua cama. Um deles diz que Tremblay estava mandando dinheiro para alguns cardeais em troca de votos, o que havia sido o motivo da sua demissão naquela última reunião com o santo padre.
Com a ajuda de Agnes, Lomeli faz cópias do documento e distribui para os votantes, jogando a candidatura de mais um cardeal no chão (cena arrepiante no filme e no livro). Como a candidatura de Bellini tinha minguado ao longo de todo o processo, agora a escolha seria entre Tedesco e o próprio Lomeli, que vinha ganhando votos ao longo do processo.
Uma bomba explode os vidros da Capela Sistina, onde ocorre a votação. Em um diálogo excepcional onde Tedesco defende a violência, Benitez oferece um contraponto (com um lugar de fala importantíssimo, diga-se de passagem), dizendo que a igreja não pode pagar violência com violência.
Mas, meu caro patriarca de Veneza, o senhor esquece que eu sou o arcebispo de Bagdá. Havia um milhão e meio de cristãos no Iraque antes de o país ser atacado pelos americanos, e agora existem apenas cento e cinquenta mil. Minha própria diocese está quase vazia. Isso demonstra o tipo de poder que tem a espada! Eu já vi os nossos lugares sagrados sob bombardeio e vi nossos irmãos e irmãs como cadáveres enfileirados no chão, tanto no Oriente Médio quanto na África. Eu os confortei nos seus momentos de desespero e os sepultei, e posso lhe afirmar que nenhum deles, nem um sequer, gostaria de ver a violência sendo respondida com a violência. Eles morreram no amor de Cristo, e pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Na próximo votação, Benítez é o novo papa. Pois bem, lembram do plot twist? Pois é, BENÍTEZ É TRANS! Ele só descobriu isso muito mais velho e pediu demissão pro papa, que insistiu que ele continuasse.
No livro isso ficou claro pra mim quando ele demora a abrir a porta do quarto, tudo está iluminado com velas e, o mais importante, ele não havia aberto sua lâmina de barbear. No filme não tem nada disso (embora um close no kit de Lawrence no começo do filme me indique que algo relacionado foi excluído na edição), mas nem precisa. Dá pra notar que o Carlos Diehz é um tantinho diferente.
Pro tanto que a história comenta sobre a necessidade de se modernizar, do tanto que as mulheres são ignoradas, etc. acho o final excelente.
Diferenças entre o livro e o filme
Na maior parte as histórias são idênticas. O nome e nacionalidade do protagonista talvez seja o que mais chame a atenção Lomeli é italiano no livro, enquanto Thomas Lawrence é inglês no filme. Talvez uma forma de deixar Ralph Fiennes mais a vontade nas partes em que ele precisa falar italiano.
Benítez no livro é filipino e da arquidiocese de Bagdá (Iraque). No filme, ele é mexicano e fica em Kabul (Afeganistão).
Sobre a corrupção de Tremblay, no livro (pelo menos até onde eu lembre e pesquisei) Bellini não aceitou nada de Tremblay, só achou que era o mal menos pior, deixando o caminho livre para sua amizade com Lomeli. No filme, Bellini teria aceitado o cargo de secretário de estado num papado de Tremblay, o tornando mais culpado que no livro.
Os pensamentos, obviamente, fazem falta no filme. A admiração que Lomeli tem por irmã Agnes, por exemplo, fica muito mais evidente no livro. Várias outras interações precisaram ser deixadas de lado no filme. Nada essencial, mas a história é tão legal que a gente sempre quer mais.
O filme tem um detalhe LINDO que não tem no livro. Na última votação, onde as janelas da Capela estão abertas pela explosão, há um close nas cédulas de votação se mexendo pelo vento. A mensagem de que os cardeais agora estavam recebendo as impressões de fora, se reconectando com o mundo exterior e que agora podiam sim relembrar as necessidades do povo foi bonito de ver.
O livro, pra mim, é melhor, mas por pouco.